Confira a entrevista com o autor de O dragão da maldade e a donzela guerreira, Marco Haurélio. A criação da obra, a literatura de cordel e a composição com as xilogravuras foram alguns dos assuntos abordados. Confira o texto completo abaixo e saiba mais sobre a obra clicando aqui.

Marco Haurélio, autor do cordel O dragão da maldade e a donzela guerreira, é baiano, de Igaporã, e nasceu em 1974. Quando menino, ao ouvir os contos e os romances que sua avó Luzia contava, começou a manifestar essa vocação poética e tentou escrever seu primeiro cordel. Adulto, tornou-se escritor, cordelista e pesquisador das tradições populares do Brasil e dos contos de fadas.


Palavras Projetos Editoriais: De onde surgiu a ideia para a criação da história e das personagens presentes em “O dragão da maldade e a donzela guerreira”?

Marco Haurélio: A ideia básica é a da mulher que se disfarça de homem para ir à guerra, tema do romance ibérico D. Barão (ou A Donzela que vai à Guerra). O tema tem inspirado muitos escritores ao longo dos séculos, ou até dos milênios, se recordarmos de Pentesileia, rainha das amazonas, que, disfarçada em guerreiro, luta com Aquiles e termina sendo morta pelo herói. Sua identidade só é revelada depois de sua morte, como acontece com Diadorim, outra “donzela guerreira”, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Acontece que eu queria contar outra história, na qual os elementos fantásticos surgissem em paralelo com os elementos realistas. Basicamente, é a história de uma sertaneja que cresce durante a ausência do pai, que saíra para trabalhar em uma fazenda de café e nunca mais retornara, o mesmo ocorrendo com seus irmãos mais velhos. É algo que realmente acontece. Ou pode acontecer. Quando ela finalmente sai de casa, em sua jornada heroica, e encontra a anciã (sua tutora), a história toma outra direção. Eu quis fazer tudo paulatinamente, mostrar o amadurecimento de Sofia, a protagonista, pois, somente assim, ela estaria preparada para enfrentar os perigos futuros.

Palavras: Qual sua relação com a literatura de cordel e como isso se reflete na obra?

Marco: Escrevo cordel desde os seis anos de idade. Minha grande incentivadora foi minha avó paterna, Luzia Josefina de Farias (1910-1983), que possuía um acervo fantástico de cordéis, parte guardado na gaveta de um armário, parte guardada nas gavetas da memória. Era também uma grande contadora de histórias, dona de um repertório assombroso que superava os 100 contos populares com sobras. Nasci na Ponta da Serra, uma localidade rural sem água encanada ou luz elétrica, e, por isso, o tempo passava mais devagar. Aprendi muitos romances de cordel e, por alguns trocados, eu os declamava nas cozinhas das casas de roça, e depois convertia o apurado em cadernos e canetas, usados para escrever meus cordéis. Minha avó tinha um cachorro chamado Provedor, mesmo nome do cachorro do pai de Sofia, em nossa história. Provedor era também o nome de um dos cachorros do herói Juvenal, na clássica História de Juvenal e o Dragão, de Leandro Gomes de Barros (1965-1918). Os doutros dois eram Rompe-Ferro e Ventania. A Conceição do Paul, cenário do começo de nossa história, realmente existe, e fica perto da Ponta da Serra, no município de Igaporã, sertão da Bahia.

Palavras: Qual foi o principal desafio na criação de “O dragão da maldade e a donzela guerreira”?

Marco: Acredito que um grande desafio foi alinhavar os vários motivos constituintes da história. Temos vários personagens, com níveis distintos, cenários diferentes e uma imagética muito rica. Eu queria que, da heroína aos antagonistas, todos tivessem um traço humano, que fugissem aos estereótipos ou esquematismos. Mesmo o coronel, batizado como “dragão da maldade”, em homenagem a Glauber Rocha, é um personagem de muitas camadas. Mas o maior desafio de todos, acredito, foi mostrar a evolução da protagonista, de menina relegada a um papel secundário na própria casa à heroína que se transforma em uma dragon-slayer. Escrevi cordéis com outras protagonistas femininas, mas nenhuma é tão complexa quanto Sofia.

Palavras: Como foi a relação com Lucélia Borges para integrar a história às xilogravuras presentes na obra?

Marco: Tenho outros trabalhos em parceria com a Lucélia, que também é minha companheira. Ela pesquisa muito, antes de começar qualquer trabalho: os arquétipos, grafismos, cenários, os rostos de cada personagem. A casa da família de Sofia, por exemplo, foi inspirada na casa de tia Lili, filha de minha avó Luzia, que também fica na Ponta da Serra. Detalhes, como a caveira de um boi na cerca da fazenda do coronel, mostram que também as ilustrações têm mais de uma camada e vão além do texto. Essas cabeças têm objetivo apotropaico (isto é, visam afugentar o mal). Quando eu era criança, não havia um terreiro de casa na zona rural que não trouxesse um desses amuletos. Lucélia e eu conversamos muito sobre cada etapa da história. Uma das cenas, mostrando os trabalhadores escravizados pelo coronel, foi inspirada na tela “Operários”, de Tarsila do Amaral.

Palavras: Como você vê a relação entre o cordel e as xilogravuras em sua obra? Qual a importância dessa correlação?

Marco: Nem todos os meus cordéis, incluindo os folhetos, são ilustrados com xilogravuras. Na verdade, não há essa obrigatoriedade. Ainda assim, acredito que a xilogravura seja a ilustração mais característica da literatura de cordel, dos folhetos aos livros infantis e juvenis. Devemos isso aos grandes mestres, que enfrentaram o preconceito, mesmo no meio popular, quando os folhetos passaram a ser ilustrados com xilogravuras. São eles, entre outros, Walderedo, Stenio Diniz, Dila, José Costa Leite, Jerônimo e Marcelo Soares, Abraão Batista e J. Borges. Hoje, felizmente, também há mulheres nesse rol, e a Lucélia reconhece quem abriu os caminhos, enfrentando preconceitos, para que a xilogravura alcançasse o merecido respeito.

Palavras: Qual sua expectativa para os jovens leitores que irão conhecer essa história, seja na escola, seja em suas casas?

Marco: Espero, sinceramente, que gostem. Há vários ingredientes, inclusive das histórias fantásticas, que devem chamar a atenção do público jovem. E também de outras idades. A jornada de Sofia é uma jornada de amadurecimento, de passagem da adolescência para a idade adulta, e nisso, ela se aproxima das heroínas dos filmes de Hayao Miyazaki, o grande diretor japonês, fonte de inspiração para mim.

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