O ano era 2020, bem no finalzinho, entre Finados e Natal.

Sobre o fogão, a panela de pressão chiava mais que trabalhador com o preço do tomate na feira, o gato miava e reclamava da sujeira no banheirinho já limpo, o barulho de fora invadia o apartamento, janela de frente para a rua, um vaivém de carros, alguém lá embaixo relatou: “Dá a seta, infeliz!”. Lugar tranquilo, interior de São Paulo.

Fui até uma janela para pensar na vida, já que o trabalho era complicado. Passava do meio-dia e o sol da tarde iluminava o piso frio da sala de estar. Peguei uma xícara de café e me encostei na janela para gerar minha carga semanal de vitamina D. Comecei a pensar que, se não conseguir revisar os textos, talvez pudesse escrever alguma coisa, quem sabe um poema… Mas poema requer uma dose cavalar de inspiração, silêncio, coração cheio e mente vazia.

A mente vazia estava presente, mas o silêncio ali era mais raro que gato quieto embaixo de chuveiro quente. 

Foi quando, diante da janela, vi um catador de materiais recicláveis ​​parar a carroça ao lado das quatro lixeiras do condomínio. Ele abriu, uma a uma, e começou a remexer as sacolas, retirando dali garrafas PET, latas, papelão. A calçada ficou imunda de lixo revirado, e fiquei imaginando com que humor o funcionário do condomínio sairia para limpar o que cinco minutos antes estava limpo. 

No entanto, não houve necessidade disso. Após separar os itens de seu interesse, o catador colocou todo o lixo de volta na lixeira. Não precisou de vassoura ou pá. Com as mãos em concha, ele limpou até papéis picados. A cinza da calçada e o verde da grama estão intactos sob o céu daquela tarde. 
A consciência do catador me impressionou. Afinal de contas, a rua também é nossa casa. Assim como é a casa dos outros. Então por que tanta gente joga papel no chão?

Com esse pensamento, comecei a me perguntar o que ele faria se encontrasse livros na lixeira. Ele separaria para mandar para a reciclagem ou faria uso deles de outra maneira? Aproveitaria para ler os livros movidos por curiosidade ou concluiria que aquilo era apenas papel usado e sem serventia?
E foi em meio ao caos de carros na rua, vizinho gritando na entrada do prédio e gato exigindo atenção que O Reciclador de Palavras nasceu. 

O título do livro não veio de pronto, mas surgiu antes do fim da história. A dúvida real foi quem era de fato esse personagem. Seria ele um encantador de palavras, um mágico das letras, um arrebatador de sonhos, um notável da vida? Quando me decidi por O Reciclador de Palavras , tomando o cuidado para que não houvesse um título igual já publicado, a história foi mostrada inteira para mim.

Eu só preciso perguntar a ele quem ele era. E por que estava aqui (em minha mente).

Foi assim que meu pai apareceu na história. Ou será que foi a história que meu pai me contou que apareceu ali naquele momento? O pai que eu não via há um ano por causa da pandemia. O pai, hoje já idoso, que saiu do sertão de Pernambuco na década de 1960, aos doze anos de idade, subiu, sozinho, na carroceria de um caminhão e movimentos para o Ceará com a cara e a coragem. Do Ceará, foi até o Rio de Janeiro, porque na casa dele se ouvia muito falar nas bandas de cá como um mundo mais colorido, mas cor de céu e de mar era o Nordeste que sabia pintar. Meu pai não foi catador de recicláveis, mas esmalteiro, fotógrafo, cabo do exército e o que mais pudesse ser. Deu um salto na vida sem vara para ajudar. Desenhando sua própria casa onde mora, e hoje, aos quase 74 anos, continua trabalhando porque casa é lugar de descanso. E ele se considera novo demais para se deitar.

Acreditando que a educação e a leitura fossem bases para a abertura de caminhos, mantinha para as filhas em casa uma estante de livros que nunca leu. 

“Tem tanto livro nessa casa. Vá ler alguma coisa e pare de arrumar ideia!” 

Sempre que havia uma pergunta a se fazer, a resposta era uma só: 

“Você já descobriu isso nos livros?”. 

E foi assim que meu pai incutiu em mim o sonho de ter uma Enciclopédia Barsa. 

Luiz, o reciclador de palavras, busca tirar uma lição dos livros que encontrou. Um ser “invisível” numa sociedade tão dinâmica e vertiginosa como a de São Paulo poderia tornar visíveis outras realidades: o meio ambiente, as pessoas em situação de rua, a importância da arte, da leitura e da nossa literatura tão rica para ampliar horizontes. 

Debruçada sobre a história, foram apenas quatro horas de escrita descompromissada. E mais de dez horas de reescrita ininterrupta, desta vez comprometida. Tira de um lado, coloca no outro, diz de um lado, rediz de outro, reprograma, pincela. Aquarela. O reciclador precisa ser reciclado para caber nas páginas da fantasia, embalar sonhos e encantar adultos e crianças.

Dormir pra quê? É uma vez que a gente deve escrever com o coração e reescrever com a cabeça. Mas os sonhos não nascem justamente em nossa cabeça?

Eu, como leitora e depois escritora, agradeço ao mundo das palavras, pois foi ele que me permitiu ser o que sou hoje (ou tento ser). E de dar vida ao Luiz, O Reciclador de Palavras, que hoje se apresenta a vocês.

E como terminou Drummond em sua última crônica, publicada em 1984…

“Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.”

Bárbara Parente

27 de maio de 2022