Quando decidi escrever Para onde me levam os meus pés? não me perguntei a quem escrevia, confesso. Escrevi, pois tinha latente em mim um percurso que se iniciara na minha própria infância e que, em forte medida, ainda não se encerrou. Eu simplesmente olhei para meus pés e constatei o quanto caminhei, o quanto já me distancie e me reaproximei de caminhos herdados ou lentamente construídos ao longo de não sei quanto tempo. Escrevi esse texto para dar espaço à voz que reside em mim desde sempre. E, sem planejar, fui ao encontro de muitas crianças. Eu e a Ianah Maia, a sensível ilustradora convidada para criar imagens para o meu percurso de escrita.


Então, o que se coloca em primeiro lugar para mim é questão da autoria do livro chamado infantil ou do livro para a infância. Afinal, quem em mim escreveu o livro? Certamente não foi a pesquisadora ou a professora, penso que foi aquela voz em mim guardada há anos, aquela que ainda não disse tudo que tem a dizer e que busca existir em sua totalidade, independentemente da idade. Ao refletir especialmente sobre essa autoria, penso que, no meu processo de escrita, a urgência de escrever sobre minha própria infância me aproximou de outras crianças, quebrando hierarquias que eu cheguei a imaginar existir entre leitores adultos e infantis. Devo confessar que durante algum tempo achei que leitores adultos ensinam leitores crianças a ler literatura… Sim, cometi essa tolice!


Agora, com o livro publicado, reconheço que eu não escrevi para crianças, pois eu escrevi na presença de minha porção menina que sobreviveu aos modelos impostos por certo modelo educativo – ou pelo mercado. Assim, percebo agora que escrevi com minha criança e com aquelas com as quais convivi e ainda convivo. Quanta diferença pode fazer escrever – ou ler – para e com, não?


Ainda no processo de produção do livro, resgatei aquela antiga brincadeira de imaginar animais e objetos ao olhar as nuvens do céu. Lembrei-me de como eu adorava criar cenas e imagens ao olhar pontas de nuvens, pedaços brancos no céu que se modificavam com o vento. Eu não duvido que tenha sido essa brincadeira que disparou em mim o gosto pelas artes plásticas e pela plasticidade que têm as palavras no texto literário. Com um pouco de distanciamento, pressinto que as ilustrações de meu livro, metonimicamente, contam mais histórias que as palavras combinadas na composição do texto, assim como eu fazia ao imaginar histórias completas ao observar as nuvens do céu.


Digo isso porque, ao ler o livro com crianças que ainda não dominam a escrita, percebi que elas completavam as cenas com ideias muito criativas. Uma leitora de seis anos, por exemplo, imaginou situações incríveis para as páginas que se referem ao primeiro passeio de bicicleta na cidade. Nessa passagem, tanto texto quando ilustração somente indiciam situações, causas e consequências do passeio. Outra leitora – de cinco anos – ao observar que os pés da personagem conduzem a breve narrativa, disse que ela mesma também pode caminhar, mas que ainda sente falta das mãos da mãe para acompanhá-la. Essa conclusão dela rendeu uma conversa muito sensível entre nós. Já um leitor de nove anos afirmou, no final da leitura compartilhada comigo, que se os pés da personagem andaram tanto, ele também podia sair mundo afora e escrever sobre isso. Essas experiências provocaram em mim um sentimento de partilha, de acolhimento e de profundo sentido para a escrita e para a leitura de um texto que pretende trazer à tona a própria infância.


Outro aspecto relevante para mim é a maneira como se dá a leitura oral do texto quando estou lendo com crianças. Os poucos versos dispostos em cada página dão espaço para divagações compartilhadas, e o ritmo do texto favorece uma graça entre alguns leitores que arriscam inserir novos versos. Ao ler este meu livro com as crianças, eu me sinto como elas, companheira delas, só que mais experiente, mais vivida e com muito mais memória de outros livros e imagens, o que acaba por tornar mais rico nosso diálogo.


A experiência de publicar este livro tem me ajudado a refletir sobre a chamada literatura infantil e aos poucos concluo, mesmo que depois mude de ideia, que não há uma única literatura infantil. Que há, sim, literaturas voltadas à infância cuja autoria pode ser de um adulto a escrever para criança, de um adulto a escrever para outro adulto que foi criança, de um adulto que ainda tem sua criança viva a escrever para outro ser que vive, em alguma medida, a infância em toda sua potência e complexidade. E que não há leitores prontos, já que cada livro é um livro, que aqueles nos tocam, nos afetam até revolver nossa experiência e imaginação aos limites do nunca imaginado.

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