Confira a entrevista completa de Andréia Vieira, autora e ilustradora de Nig-Nig, para a Palavras. Na conversa, ela abordou a concepção do livro, os desafios da produção e a importância de se debater sobre questões emocionais e psicológicas.
Andréia Vieira é artista visual, ilustradora e escritora, autora de livros infantis de literatura e de didáticos. Ministra oficinas lúdicas e educativas em eventos e espaços culturais como o Sesc, livrarias e bienais do livro. Colaborou por anos com diversas editoras de livros e revistas e no jornal Folha de São Paulo.
Foi voluntária na ONG SOS Mata Atlântica, participando de projetos de educação ambiental. Trabalha com diversas técnicas: colagem, pintura acrílica, monotipia, carvão, nanquim e artes digitais. Estudou contação de histórias na Livraria da Vila em São Paulo, filosofia, canto, violão e italiano. Estudou com artistas e autores consagrados e participou de cursos de arte na Fabbrica delle Favole, em Macerata, Itália, com o artista espanhol Pablo Auladell e o belga Carll Cneut.
Palavras Projetos Editoriais: De onde surgiu a ideia e a concepção de “Nig-Nig”?
Andréia Vieira: As ideias de meus livros nascem da observação, reflexões e questionamentos sobre a vida: natureza, fatos cotidianos, conversas, viagens e pessoas me inspiram. E na maioria das vezes, esse alimento, essas elocubrações, em algum momento se revelam em uma ideia — que surge em um “click“! — e emergem de repente, por pura imaginação. Assim nasceu Nig-Nig.
Sempre me fascina e instiga esse mundo que existe em nossas cabeças e em nossos pensamentos e que fazem de nós… quem somos nós!
Como é que nasce nosso mundo interno, essas vozes que falam dentro de nós? E se nascemos puros, “zerados”, quais dessas ideias que surgem são nossas? Quais delas outras pessoas colocam em nossas cabeças e acreditamos ser verdade? Levamos esses pensamentos quando crescemos? Há quanto tempo eles moram dentro da gente? Quando eles nasceram? Eles podem nos ajudar ou impedir de crescer?
Nig-Nig nasceu rascunhado de maneira simples, em um projeto/boneco bem “pequeninim” (10x10cm). Era um personagem ainda sem nome, que se sentia solitário e triste em seu mundo e ficava imaginando que quando crescesse seria mais feliz, pois acreditava que a vida dos Adultins fosse um paraíso, sem minhocas na cabeça — sem problemas emocionais, sem ninguém zombando dele e onde tudo que o que desejava era possível de se ter e fazer.
A ideia do planeta Adultim-Mininim com dois mundos separados (ou seriam unidos?) por uma ponte e com universos diferentes é uma metáfora nonsense de quando acreditamos que “problemas só acontecem em meu mundo”. Também foi uma maneira de narrativa visual de aproximar o leitor desse mundo ao ilustrar a história começando como um zoom — do macro (céu estrelado, planetas) ao micro (os conflitos de Nig-Nig). Do macro ao micro, quantos universos, vidas e pensamentos diferentes existem? Existem problemas pequenos e grandes?
O início mostra como o planeta é, e na sequência, como Nig-Nig o enxerga, enquanto reflete sobre seu mundo, desenhando. Quando somos crianças, é comum desenharmos círculos e contorná-los incessantemente. É um impulso inconsciente de reforçar o próprio mundo: “isso é meu”; assim como os desenhos da casa, do céu, dos pais. São com anos e muitas camadas que vamos nos identificando e formando o que chamamos de “eu”. Existe o mundo e existe o “nosso mundo”.
Em geral, nos primeiros rascunhos, resolvo rapidamente a ideia de meus livros, e com uma sequência fluida narrativa, vou imaginando a história como se fosse um filme. Considero — e guardo sempre — os primeiros bonecos/rascunhos, pois são como uma semente onde a potência de vida do livro está toda ali. E ainda que leve, depois, muita elaboração até se transformar em uma obra impressa, durante o processo, revisito esse boneco inicial para não esquecer sua força e frescor. No processo, é comum haver algumas mudanças nas histórias — quando Nig-Nig ficava feliz, por exemplo, nasciam flores em sua cabeça, o que não entrou no livro. É natural, no processo, agregarmos ou tirarmos parte das ideias. O final também surgiu em conversa com a editora, em que refletimos que seria importante Nig-Nig não se sentir mais sozinho, ter um apoio emocional, uma aproximação e união dos universos de Adultim e Mininim. Deixamos em aberto para o leitor refletir de qual ordem seria esse apoio, pois existem vários caminhos para lidarmos com nossas questões, sabemos que, por toda a vida, haverá novos desafios e novas minhocas na cabeça pipocando. Mas que, sobretudo, é preciso ter coragem para se abrir, para dividir o que se sente, se entender.
E como surgiu o nome do livro? Queria dar um nome para o personagem, e na época, sem nenhuma explicação, eu chamava minha cachorrinha, que hoje mora lá no teto do céu, carinhosamente de Nig-Nig. Achei que seria um nome simpático para o personagem, e sonoramente remetia a um nome de um ser extraterrestre.
E por falar nisso, Nig-Nig também tem uma estrelinha de estimação, que é uma personagem que fui desenvolvendo ao longo do projeto e que ganhou vida própria, sendo sua companheira. As estrelas são símbolos de guia, algo maior, que miramos para seguir e confiar. É preciso recordar de admirá-las e de sentirmos dentro de nós, para que possamos brilhar e seguir.
Palavras: Como você vê a relação entre texto e imagem em sua obra? Qual a importância dessa correlação?
Andréia:A relação texto e imagem é extremamente importante, eles se complementam e potencializam as ideias, inclusive trazendo musicalidade e movimento durante a leitura, em especial em voz alta. As frases são curtas, para que cada página tenha sua mensagem dita de forma direta: ora com ironia, ora com ternura, ora causando estranhamento — quem seriam esses seres?
Algumas cenas são feitas apenas de imagens, para que o leitor possa sentir o quanto Nig-Nig chega no limite de suas emoções.
O projeto gráfico também inclui uma fonte diferente para destacar de maneira divertida as vozes que atormentam Nig-Nig. A composição do texto, assim, se torna parte do desenho do livro, assim como a expressão dos personagens fazem parte da escrita do livro, das coisas não ditas, mas sentidas por eles. A escolha da técnica do desenho traçado a grafite também foi feita para trazer mais vida e movimento às imagens. A cada livro que faço, procuro trabalhar em uma técnica diferente, acredito que os materiais têm sua própria voz, e que, por vezes, é bonito deixá-los cantar.
Palavras: Como foi a experiência de abordar um tema tão sensível de forma leve para os leitores pequenos?
Andréia: Foi uma experiência divertida e fluida, não racionalizei muito, fui me divertindo ao fazer. O autor deve ser sempre o primeiro a se divertir em uma obra, e isso, em geral, fica muito evidente no resultado de um livro.
Acredito que quando deixo de colocar um personagem humano e elejo para a história um fantasioso, como um monstrinho ou um extraterrestre, tiro o foco da realidade, o que é uma pausa para respirar e se afastar um pouco dela. Isso faz o leitor ter um distanciamento e ao mesmo tempo criar uma empatia com o personagem. Alguns temas, ainda que sensíveis, por vezes podem ser trabalhados de forma poética ao fazer o leitor refletir através da beleza ou do riso. O riso é uma forma de abrir o coração, destravar as tensões, voltar a respirar. Essa pausa pode ser vital, muito saudável para repensarmos a realidade com a cabeça mais fresca. Lembrei de uma reflexão linda do humorista Chico Anysio que reflete muito sobre isso: “O humor é irmão da poesia. O humor é quem denuncia. Eu não tenho possibilidade de consertar nada, mas eu tenho a obrigação de denunciar tudo, porque essa é a obrigação primeira do humorista. O humor é tudo, até engraçado.”
Palavras: Qual foi o principal desafio na escrita do livro?
Andréia:O maior desafio tanto ao elaborar o texto quanto as imagens sempre é manter o frescor inicial. E se desapegar de algumas ideias.
Quando surge a ideia de um livro, é possível que ela nunca seja publicada ou até mesmo que não tenha inicialmente a intenção de ser mostrada. Então, para mim, a escrita e o desenho se tornam um sismógrafo da alma, é o momento em que me divirto, sem regras, mas claro que sempre emanando as experiências que acumulei. Ao apresentar um livro para uma editora que deseje tornar a história em uma obra publicável, ele se torna ainda mais rico, porque ganha o abraço e a visão de mais pessoas, de uma equipe competente, com experiências e conhecimentos diversos. É sempre importante rever, escrever e reescrever: lapidar, ler, ouvir, dividir e sentir. Manter a autoria, mas saber a importância também de que, a partir do momento que o livro se torna uma obra construída, é preciso estar aberto a mudanças necessárias, o trabalho em equipe com a editora é sempre uma parceria importante para agregar e criar em conjunto uma obra que proporcione uma experiência rica e agradável ao leitor.
Palavras: Qual sua expectativa para os jovens e adultos que conhecerão essa história?
Andréia: Acredito que livros são pequenas revoluções: podem dar vozes a sentimentos que não conseguimos expressar, coragem para falar de temas que nos tocam. Nig-Nig foi ganhando em sua elaboração uma intenção de debater sobre um problema que afeta muito nossa autoestima: a rejeição, a intolerância, o olhar e as palavras de pessoas que convivemos e que nos machucam. Também nossa autodepreciação e nossa baixa autoestima, que nos impedem de crescer. A somatização dessas ”minhocas”, sentimentos e pensamentos “fritam” nossa cabeça, e se não falamos, nos adoecem e viram verdadeiras bombas-relógio em algum momento. Essa violência é o que vemos nas escolas, que são uma microssociedade, se formando e convivendo todos os dias, e é preciso de atenção a cada alma em potencial que está crescendo e nas relações entre os alunos. O bullying é uma questão de graves desdobramentos na vida de um ser humano, em especial nas escolas. Ficaria muito feliz de ver o livro ser ponte para esses debates, promovendo dinâmicas, exercícios de desenho, escrita, em que o leitor possa fazer sua lista de pensamentos, de como se vê no mundo, das coisas que o deixam triste e das coisas positivas também sobre si mesmo. Também de se abrir e denunciar quem cometa violência psicológica com ele, a pessoas que confie, sejam professores, sejam seus pais. Há muitas pessoas, crianças e adultos, que sofrem em silêncio e precisam de um olhar mais sensível, por não saberem como se defender.
Que o livro seja mais uma contribuição que some na vida do leitor, que traga coragem para falar o que sente, se libertar de pensamentos que o impeçam de ter uma vida construtiva e feliz.
O sonho de todo autor, imagino, é que alguém abra um sorriso, se comova, se ilumine ao ler sua obra e diga a alguém que ame muito: leia esse livro, você vai adorar!
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