Literatura | Pelos Olhos de Minha Mãe

Literatura

Pelos Olhos de Minha Mãe

Diários, memórias e outras lembranças

Laura Huzak Andreato e Iolanda Huzak

Pelos olhos de minha mãe

Seja conduzido por essa sensível visita de Laura Huzak Andreato pela obra de sua mãe, a fotógrafa Iolanda Huzak

Sobre a obra

Hoje, como em tantas outras noites, sonhei com minha mãe. Estávamos em algum lugar indefinido e eu me alegrava por vê-la voltando não sei bem de onde. Acabava a angústia de estar procurando por ela. Era uma situação banal, como se a gente apenas tivesse se perdido uma da outra rapidamente. Sentia um grande alívio por tê-la de novo por perto.

 

 Acordei pensando que o sonho não deixava de ser um prenúncio: tinha finalmente decidido encarar a tarefa de visitar os arquivos de minha mãe, tantas vezes adiada para o dia seguinte. Eu me reencontraria com ela de certa forma. 

 

Haviam-se passado quase 7 anos de sua morte. Seus arquivos estavam bem guardados, mas faltava coragem para mergulhar neles e dar-lhes o destino que mereciam. Fazê-los públicos, deixar imagens tão necessárias à vista novamente.

É assim que Laura Huzak Andreato começa a tecer os fios de sua memória e nos conduz por uma sensível visita pela obra de sua mãe, a fotógrafa Iolanda Huzak.

 

Nesse entrelaçamento de olhares e testemunhos, da cumplicidade entre filha e mãe, o leitor vê tomarem forma, nas páginas deste livro, as expressões, os gestos, as angústias e os sonhos de crianças, mulheres, trabalhadores e artistas imersos em seu cotidiano, muitas vezes marcados por conflitos de uma sociedade desigual.

 

O olhar de Iolanda, registrado em suas fotografias, denuncia a vida real desses personagens que se recusam a abrir mão de sua altivez e dignidade.

Conheça as autoras de Pelos olhos de minha mãe

  • Laura Huzak Andreato é formada em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação e Artes da USP, onde também cursou o mestrado em Poéticas Visuais. Atualmente, nesse mesmo programa de pós-graduação, prepara o doutorado. É autora de Pelos Olhos de Minha Mãe.

  • (1947-2013) iniciou sua carreira como fotojornalista em 1972, com imagens que registravam alguns dos grandes momentos da arte brasileira, no teatro e na música, bem como escancararam várias das desigualdades que até hoje marcam o Brasil, a América Latina e outras sociedades do mundo. Um olhar que esteve presente em reportagens de diversos jornais e revistas do país, compôs vários livros e exposições, pelo Brasil e o mundo afora.

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Tecendo Enredos: Iolanda Huzak

14 de março de 2009.

Escrever é como se perpetuar na memória dos seus. É uma maneira de deixar para as gerações que virão uma memória do que se era e do que se continuará sendo. Pois não é esta a melhor maneira de deixarmos uma lembrança? Deixar a nossa história, esperando que ela seja recontada, assim como as histórias foram transmitidas oralmente pelos antigos povos africanos, como as histórias que nossos pais nos contam até hoje. São as memórias que nos trazem à vida novamente.

Iolanda Huzak

Iolanda Huzak escolheu ser fotojornalista, aquele profissional habilitado a utilizar seu olhar e equipamentos para registrar a vida cotidiana por meio das imagens, e assim informar e provocar a reflexão do público em geral. Foi com esse propósito que ela criou, ao longo da vida, um acervo fotográfico marcado pela beleza estética e, ao mesmo tempo, de expressivo valor social.

 

Esses enredos foram construídos muitas vezes com o pé na estrada, inclusive por terras mergulhadas em conflitos armados, como em El Salvador, 1988. Iolanda voltava para casa exausta, como assinala as memórias de sua filha, sonhando que um dia a realidade conturbada por ela testemunhada se transformasse na paz transmitida pelo revoar das borboletas.

 

Iolanda iniciou sua carreira como fotojornalista em 1972, com imagens que registravam alguns dos grandes momentos da arte brasileira, no teatro e na música, bem como escancararam várias das desigualdades que até hoje marcam o Brasil, a América Latina e outras sociedades do mundo. Um olhar que esteve presente em reportagens de diversos jornais e revistas do país, compôs vários livros e exposições, pelo Brasil e o mundo afora.

Iolanda ganhou prêmios como o Vladimir Herzog de Direitos Humanos (pelo trabalho Crianças de Fibra) e o Malba Tahan, da Fundação Nacional do Livro Infantil (pelo livro Serafina e a Criança que Trabalha). Suas fotografias encontram-se hoje preservadas em instituições como o Museu da Imagem do Som (MIS/SP), o Arquivo Público do Estado de São Paulo e o Museu Afro Brasil (SP).

 

A trajetória de Iolanda é reconstruída por fontes de informação bastante diversificadas: matérias publicadas na imprensa, fotos familiares, documentos, diário pessoal e, claro, o acervo imagético produzido pela própria biografada. São esses registros da memória que conduzem a narrativa, ao lado das lembranças afetivas que marcaram Laura Huzak Andreato, sua filha, num entrelaçar de testemunhos que acabaram por construir uma narrativa única e sensível.

 

Para dar uma lógica ao acervo de imagens da mãe, Laura inspirou-se nos quatro eixos temáticos de uma exposição feita no MIS em comemoração aos 35 anos de carreira de Iolanda. Um deles era palco, reunindo as imagens e relatos sobre a relação da fotógrafa com a música popular e o teatro. Outro era cultura popular, com os registros de costumes, danças, festas e arte brasileira. Tinha trabalho, com fotografias do cotidiano de trabalhadores no Brasil e em outros países do mundo, como Costa Rica e Guatemala. E, por fim, infância, com cenas do trabalho de crianças, mas também da felicidade, das brincadeiras, dos jogos infantis.

 

Puxado pelas memórias de Laura, todo esse arranjo da antiga exposição ganhou aqui novas sequências, uma curadoria marcada pela razão e o afeto.

O Lugar Na Estante: A Vulnerabilidade Dos Jovens

Para Iolanda Huzak, esse trabalho de fotógrafo significava “ser os olhos das pessoas que não podem estar onde ele está. E eu tento ser, da melhor forma possível, os olhos de alguém que um dia vai ver aquilo que eu acho importante mostrar”.

 

Foi com esse olhar que Iolanda registrou, por exemplo, o grave problema das crianças submetidas ao trabalho infantil, realidade que termina por eliminar todas as possibilidades de um futuro promissor àquele indivíduo. Em uma entrevista para a revista Teoria e Debate, ela destacava que a criança capturada por essa forma de exploração se tornaria um adulto prejudicado, não só pela falta da educação formal, mas também em sua saúde:

O trabalhador que começa nessas condições, principalmente na lavoura, com trinta, 35 anos, já é uma mão de obra descartável por causa das suas condições físicas. Aliás, levam os filhos justamente para compensar essa falha. (Teoria e debate. Crianças de Fibra: entrevista com Iolanda Huzak e Jô Azevedo. 1o jun. 1994)

Grande parte do registro dessa realidade foi composta por Iolanda viajando o país. E muito do que foi produzindo acabou por compor, além de diversas exposições, quatro livros: Crianças de Fibra (1994), com texto de Jô Azevedo; Serafina e a Criança que Trabalha (1996), com texto de Jô Azevedo e Cristina Porto; Trabalho Infantil, o Difícil Sonho de ser Criança (2003), novamente com Jô Azevedo e Cristina Porto; Do Avesso ao Direito (2003), com Paloma Klisys.

O conjunto de imagens feitas por Iolanda, assim como no passado, nos permite colocar foco na vulnerabilidade dos jovens, até hoje presente no Brasil e no mundo, seja pela precariedade econômica que os cerca ou pela violência e preconceito a que estão submetidos. Essa realidade registrada pela fotógrafa, nos anos 1990, ainda se encontra presente entre nós de forma dramática e carecendo de uma superação urgente. Em 2019, em um relatório do IBGE, essa realidade era assim descrita:

Embora em três anos tenha havido redução de cerca de 357 mil, ainda havia 1,8 milhão de crianças e jovens nessa situação no país, sendo 1,3 milhão em atividades econômicas e 463 mil em atividades de autoconsumo. Houve uma redução de 16,8% no contingente de crianças e adolescentes em trabalho infantil frente a 2016, quando havia 2,1 milhões de crianças trabalhando. Entre as crianças e adolescentes que realizavam atividade econômica, 45,9% estavam ocupadas em trabalho perigoso. (Agência IBGE. Trabalho infantil cai em 2019, mas 1,8 milhão de crianças estavam nessa situação. 18 dez. 2020).

O olhar para os problemas da infância foi despertado em Iolanda pelo seu trabalho de registro do cotidiano das mulheres, quase sempre submetidas a péssimas condições de vida e trabalho. Em uma viagem a El Salvador, na América Central, país então marcado por intensos conflitos armados, ela registrou:

Fotografei sobretudo o resultado da guerra: crianças e mulheres nos acampamentos, a situação de miséria absurda e total. Fotografei as crianças, o que faziam, onde estavam, como sobreviviam, em que trabalhavam. E as mulheres, suas atividades, seu trabalho durante a guerra. Acho que nesse momento a questão da infância começou a aparecer com mais intensidade para mim.

O atento olhar de Iolanda nos remete com muita frequência, a temas sociológicos e antropológicos que demarcam a sociedade brasileira, permitindo refletir sobre assuntos como os diferentes estilos de vida no espaço brasileiro, a vida das populações negras no Brasil, o empoderamento feminino e as dificuldades para a mobilidade social nesse nosso país.

 

Nessa mistura de memórias da filha e relatos da mãe, este livro ganha dimensão única, como se o leitor estivesse a vasculhar um arquivo confidencial, repleto de imagens que reúnem grande beleza estética e leva aquele que olha a se emocionar, se indignar e, principalmente, refletir.

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